“Governos não devem gastar com medicamentos sem evidências”, diz presidente de rede de pesquisa

 

Presidente de rede de pesquisa fala à Folha de S.Paulo Presidente de rede de pesquisa fala à Folha de S.Paulo São Paulo, 17 de abril de 2014.

A aplicação da medicina baseada em evidências está sendo retardada porque médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, inclusive o Brasil, não querem ver suas experiências e julgamentos questionados.

É o que diz o inglês Mark Wilson, presidente da Cochrane Collaboration, uma rede de cientistas independentes que investigam a efetividade de remédios e que, na última semana, provocou polêmica internacional envolvendo o antigripal Tamiflu.

Uma revisão de estudos da Cochrane concluiu que a droga, indicada pelas OMS (Organização Mundial da Saúde), não evita a disseminação da gripe nem diminui complicações. Só reduz a persistência dos sintomas de sete dias para 6,3 dias em adultos.

Com o temor de uma pandemia de gripe causada pelo vírus H1N1, governos de vários países, inclusive o Brasil, gastaram bilhões na compra do medicamento.

Neste ano, a Cochrane desenvolverá uma lista de 200 assuntos prioritários para ajudar os formuladores de políticas de saúde, médicos e pesquisadores a tomar decisões com base na medicina de evidência. A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha de S.Paulo.

Folha de S.Paulo - Uma revisão da Cochrane demonstrou a baixa eficácia do Tamiflu, mas a OMS considera o remédio essencial. Isso não provoca uma certa confusão?

Mark Wilson - A Cochrane chegou às suas conclusões sobre os benefícios e malefícios do Tamiflu com base em um esforço extraordinário de análise do nosso time. A revisão foi baseada em dados que estão disponíveis para quem quiser avaliá-los e fazer sua própria análise. Esperamos que a OMS reconsidere a sua orientação sobre o uso de Tamiflu com base nessa nossa última revisão.

Como vocês decidem o assunto que passará por uma revisão sistemática? A popularidade é um fator?

As revisões Cochrane são produzidas por mais de 31 mil voluntários em todo o mundo, a maioria dos quais são autores e especialistas em suas respectivas áreas de saúde. São eles que sugerem as perguntas que devem ser respondidas em revisões sistemáticas.

Em 2014, a Cochrane também está desenvolvendo uma lista de 200 assuntos prioritários para atender às necessidades dos formuladores de políticas de saúde, desenvolvedores de diretrizes, clínicos e pesquisadores. A lista será atualizada anualmente.

Como a Cochrane quer reduzir o fosso que existe entre as pessoas comuns e as evidências em saúde?

Desenvolvemos várias ferramentas que ajudam os consumidores de saúde, doentes e cidadãos a ter acesso às evidências da Cochrane para que possam tomar decisões informadas sobre a sua saúde. Uma deles é o site http://summaries.cochrane.org, destinado a responder às perguntas deles.

Isso está disponível em português. Cada uma das 5.300 revisões sistemáticas da Cochrane tem um resumo anexado que ajuda os leitores comuns a entender mais facilmente o conteúdo e as conclusões da revisão, e estamos desenvolvendo novas maneiras de fazer as implicações das opiniões mais claras e inteligíveis.

Qual é o principal desafio do estabelecimento da cultura da saúde baseada em evidências nos países em desenvolvimento, como o Brasil?

A medicina já percorreu um longo caminho em responder muitas perguntas críticas sobre a nossa saúde, mas nos esquecemos de quão recente é o nosso conhecimento avançado sobre ela. Até bem pouco tempo atrás, as pessoas tinham de fazer julgamentos com base em pouca evidência. É preciso tempo para as pessoas assimilarem esse novo conhecimento que sabemos ser verdadeiro. Mas o processo é demorado porque os médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, incluindo o Brasil, não querem ver sua experiência e julgamento questionados ou prejudicados por novas provas.

Existe uma cultura e prática da medicina baseada em eminência ("faça isso porque eu digo que é bom") em vez da medicina baseada em evidências ("faça isso porque está comprovado que funciona"). A melhor prática médica é uma combinação de julgamento e experiência aliada ao conhecimento do que está provado que funciona. Precisamos de médicos para abraçar a medicina baseada em evidências mais plenamente, de modo que eles ajudam seus pacientes e a si mesmos alcançar as melhores decisões de saúde.

Não há nenhuma evidência científica de que a homeopatia funcione. Mas a especialidade é reconhecida pelos conselhos médicos no Brasil e promovida pelo Ministério da Saúde. Qual é a sua opinião sobre isso?

Eu não posso falar sobre o julgamento do conselho de medicina no Brasil, mas as revisões Cochrane sobre o assunto sugerem que não há evidências de que a homeopatia é mais eficaz do que tomar um placebo. Pessoalmente, eu sempre recomendo que as pessoas leiam Ben Goldacre e o seu "Bad Science" (http://www.badscience.net ) para a última palavra sobre a eficácia da homeopatia.

Qual é o peso da indústria farmacêutica na promoção da cultura do cuidado de saúde baseado em evidência? E como lutar contra essa influência?

A rede Cochrane é uma organização totalmente independente, e essa é uma das razões pelas quais consumidores, médicos e governos confiam em nós.

A indústria farmacêutica trouxe, sem dúvidas, grandes avanços nos cuidados à saúde por meio de medicamentos e equipamentos que desenvolveu e colocou no mercado. Mas todos nós precisamos lembrar que a principal motivação e objetivo de uma farmacêutica é ganhar dinheiro e se manter no mercado. Está ficando mais difícil e mais caro desenvolver novas drogas que ofereçam benefícios adicionais comprovados em relação aos remédios já disponíveis.

Quando há dados que mostram que novas drogas ou equipamentos médicos não oferecem mais benefícios do que malefícios ou não oferecem um benefício extra, há também um incentivo para que as empresas não compartilhem essas informações. A Cochrane acredita que sistemas e regulações devem existir para nos proteger desse incentivo. Por isso, somos líderes da iniciativa AllTrials, que faz campanha para garantir que todos os ensaios clínicos sejam registrados e seus resultados, divulgados. Assim todos nós podemos ver esses resultados e o que eles significam em termos de efetividade, riscos e benefícios desses medicamentos.

A Cochrane enfrenta muita resistência entre os médicos?

No Brasil, conheço muitos profissionais que discordam dos resultados das revisões sistemáticas feitas pela rede, como a que avaliou os stents farmacológicos.
A Cochrane tem o compromisso em desenvolver evidências do mais alto nível para a tomada de decisões. Se alguém não gostar dos resultados do nosso trabalho, todo o material "linkado" nas nossas revisões está disponível para visualização e críticas. Nós publicamos as respostas que recebemos nas páginas das revisões relevantes e respondemos publicamente qualquer crítica que recebemos para que os leitores possam julgar se a nossa abordagem e as nossas conclusões são precisas e justas. Queremos que a Cochrane seja a "casa da evidência", onde discussões sobre cuidados de saúde acontecem. Eu desafio qualquer um que discorde dos nossos resultados a se engajar no nosso trabalho e até se juntar a nós para fazer novas revisões em áreas que carecem de mais pesquisa.

Sistemas de saúde em todo o mundo estão enfrentando muitas dificuldades quanto ao financiamento. A adoção da medicina baseada em evidência é uma forma de reduzir custos?

Governos e outros responsáveis pela saúde deveriam usar as evidências da Cochrane para ajudá-los a oferecer cuidados custo-efetivos. Por que desperdiçar dinheiro em medicamentos, equipamentos e processos que não funcionam? "Como eu sei que isso funciona e é custo-efetivo" deveria ser a preocupação do paciente, do médico e do provedor. Isso se torna ainda mais imperativo quando tantas intervenções estão cada vez mais caras. A Cochrane oferece as respostas mais definitivas em relação à efetividade de muitas dessas intervenções.

 

Fonte: Folha de S.Paulo

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